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O homem que não sabia jogar joga com o homem que sabia errar

ELIDA TESSLER

Setembro de 2006. Publicado em Obras Comentadas da Coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo. MAM – São Paulo.

 

Pingue – Eu sou o homem que não sabia jogar. Li Heráclito e já morri. O mesmo Heráclito que anuncia: “A vida é um jovem que joga, jogo de dados: do jovem é o reino” 1 Quer jogar uma partida comigo?

Pongue – Eu não morro. Eu erro. A errância entre a arte e a vida me joga sempre para o outro lado da rede. Como posso ser seu adversário quando já sou o meu?

Pingue – Primeiro erro: neste ou em qualquer outro jogo, somos sempre o nosso primeiro adversário, o que não exclui um segundo, um terceiro, ou todo o público que estiver nos assistindo. Podemos circular em volta da mesa sincronicamente jogue na vez do outro… seja o outro na sua vez. Assim, já não nos banharemos nas mesmas águas de um mesmo rio. Serás o vencedor enquanto estiveres jogando e criando as possibilidades do erro. Regra não há. Fluxos sim, ou Fluxus.2

Jogo dos Sete Erros

Pongue – Chico Amaral tem uma série de trabalhos com a proposta Jogo dos 7 erros. Ele já concebeu, por exemplo, várias mesas de pingue-pongue circulares, com 180 cm de diâmetro. Nesta passagem de um campo a outro, realizamos a volta de 360 graus, para retornarmos diferentes ao nosso ponto de partida. Chico Amaral me perturba. Com as bolas de pingue-pongue recheadas com areia ou água, eu me frustro. Elas não prolongam a trajetória de meu gesto, perco o passo, desacerto o espaço.

Pingue – Segundo erro: Ponto perdido é ponto ganho! Questões de posicionamento e ação, meu caro. Atenção: Percepção requer envolvimento. 3 O espaço e o tempo estão no som da bola branca que bate e rebate, pica e repica, ou ainda desaparece. Quando a bolinha cai no vazio, o silêncio anuncia o fracasso. Ponto final. Não há mais campo, não há mais mesa, rompe-se o eixo de alternância. Se seguirmos alguns lances de Samuel Beckett, saberemos que ri melhor quem falha por último. Tente de novo.

Pongue – Estou me sentido como Hamm, personagem de seu amigo Beckett em Fim de partida: “Me sinto um pouco à esquerda demais (…) Agora me sinto um pouco à direita demais (…) Me sinto um pouco pra frente demais. Agora me sinto um pouco pra trás demais (…) Não fique aí parado (…) você me dá arrepios.”4

Pingue O Jogo dos 7 erros – proposta 1 não quer saber de ninguém parado. É o movimento que promove o jogo. O homem que não sabia jogar imobilizou-se no seu desespero, não soube esperar, perdeu as esperanças. Suicidou-se. Este sou eu. Mas como eu, neste caso, posso ser o outro (seja o outro na sua vez), vivo agora esperando adversários. Toda espera é um ato de afeto. Agora eu já sei: Importa saber viver. Importa saber jogar. Viver e jogar é o mesmo5 . Em algumas bolinhas de pingue-pongue, posso ler: minha vez de esperar sua vez.6 Quer jogar uma partida comigo?

Jogo dos Sete Erros. Foto Tuca Reinés, arquivo MAM SP

PongueFluxus, enquanto movimento da história da arte recente e associado ao Dada é uma das bolinhas de pingue-pongue de Chico Amaral. O artista joga com a história da arte fatiando-a e apresentando-a em múltiplas camadas. Esticaa da mesma forma como estende uma mesa-campo a 6,8 m. Neste caso, o território do jogo pode vir a ser uma linha de horizonte. Você, como o homem que não sabia jogar, já vivenciou a situação radical de uma linha de horizonte que se modifica ao compasso de nossos pés, não é mesmo? O chão cede quando nos colocamos em movimento.

Pingue – Você não me respondeu, e este é seu terceiro erro. Você está abandonando a errância para entrar no campo das divagações. E isto é muito diferente.

Pongue – Você é que não está percebendo. Erro com o cuidado persistente de acertar, lição de Platão reativada por Donaldo Schuler. Tentamos falhar melhor do que Beckett ou procuramos os impossíveis de uma utopia?7

Pingue – O que procuramos é ocupar os lugares, e para mim, isto é sempre possível. Porém, antes de ocupar propriamente falando, é preciso inventar. Esta é a linguagem da arte: criar lugares de jogo entre as visibilidades e as invisibilidades. O que me conduz ao desejo de estar junto à James Joyce, quando ele cria sua palavra-valise visuabilidades.Um autêntico pingue-pongue entre a visualidade e a habilidade. Nestas estratégias de jogo, é necessário ser muito hábil.

Pongue – Sou inábil. Sou ingênuo. Sou quase cego. Eu erro. Preciso de equipamentos para ver, óculos espelhados e olhos mágicos…

Pingue – Quarto erro: você não vê pouco, você olha o duplo! O um e o outro, o dentro e o fora, o eu que não sou eu, tudo isso! Uma coleção de issos! A sua miopia é a minha utopia!

Pongue – Fico vaidoso. Agora sou tal qual Hamm, o cego de Beckett, ou Hamlett, de Sheakspeare. Ser ou não ser, eis a questão.

Pingue – Quinto erro, e agora as coisas estão indo longe demais. Ser um e ser outro eis a questão do jogo.

Jogo dos Sete Erros, miniatura

Pongue – Não frequento o Olimpo dos esportes mas conheço o OULIPO literário: fabricante de regras, criam subvertendo-as ou dependendo delas. Há regras para escrever. Há regras para entrever. Marcel Duchamp também fazia parte deste grupo fundado pelo poeta Raymond Queneau, autor de Exercícios de estilo. Não vamos esquecer do que Duchamp propôs: São os olhadores que fazem o quadro.

Pingue – Estou cansando de tantos exercícios. Sexto erro: são os jogadores que fazem o jogo!

– Pingue “O fim está no começo, e no entanto, continua-se”8. Este é um outro aprendizado a partir de Beckett. Mas a partida é nossa, e também o resultado, e ainda o prêmio. Não podemos descolar a proposição 1 de todas as outras de Chico Amaral: há a mesa que se estende como um horizonte, há aquelas que se tornaram circunferências, as que se dobram como quem derrapa e trava, em movimentos angulosos e quebradiços. Repare na mesa-escada e na mesa estreita, nas raquetes superdimensionadas ou as arqueológicas, apresentando os rebatimentos como camadas de história. Alterações dos equipamentos proporcionando o alargamento da percepção. Ponto para Antoni Muntadas! E…

– Pongue – Agora sou eu quem diz: Sétimo erro!!! É preciso terminar o jogo, concentrando-se apenas na proposição 1, de 1999, que agora faz parte da Coleção do MAM-SP. Sim, aceito jogar uma partida com você.

 

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1 Devo a estrutura deste texto ao fantástico ensaio de Donaldo Schuler O homem que não sabia jogar (Porto Alegre, Movimento,1998) a quem agradeço por ter me ensinado a jogar de forma diferente com as palavras. Este ensaio trás importantes noções filosóficas e literárias ao universo da criação artística. A citação de Heráclito abre o ensaio de Donaldo Schuler, como uma epígrafe.

2 Como define Jon Hendricks, Fluxus, enquanto um movimento artístico, nasceu de uma necessidade em 1961, tendo George Maciunas como mentor. As noções de mudança que as definições do dicionário forneciam para a palavra fluxo foram adotadas para a redação do primeiro manifesto, tais como mudança, endurecimento, purificação, fluidez e fusão. In: catálogo da exposição O que é fluxus? O que não é? O porquê. Curadoria de Jon Heidricks. CCBB-Brasília, 2002.

3 Esta proposição é do artista catalão Antoni Muntadas, apresentada em diferentes suportes e situações, em diversos idiomas. Faço aqui referência ao backlight instalado na Galeria Chaves (Porto Alegre), obra pertencente ao acervo da Fundação Vera Chaves Barcellos, Porto Alegre.

4 BECKETT, Samuel. Fim de partida. SP, Cosac & Naify, 2002.

5 SCHULER, Donaldo. O homem que não sabia jogar. Porto Alegre, Movimento, 1998. p.79

6 Remeto o leitor ao texto de Marilia Panitz Acaso e estratégia publicado no catálogo Gentil Reversão, CCBB-Brasília – 7/12/2001-8/2/2002, p.94, onde ela aborda a produção de Chico Amaral, relacionada aos outros artistas da exposição, quais sejam, Ana Miguel, Elder Rocha Ge Orthof e Ralph Gehre. Neste mesmo catálogo, encontramos o texto As regras do jogo, onde Ge Orthof percorre os elementos que compõem o jogo de Chico Amaral, ao mesmo tempo que decompõem algumas regras da arte.

7 Sabe-se que o assunto preferido de Samuel Beckett é o fracasso, e este tema está brilhantemente exposto por Fabio de Souza Andrade, no texto de apresentação da peça Fim de partida, bem como a proposição beckettiana: tentar de novo, falhar melhor.

8 Esta é uma das falas de Hamm, personagem da peça O fim da partida de Samuel Beckett (SP, Cosac & Naify, 2002), p.128. Desta afirmação, segue-se outra, que faz jus ao JOGO DOS SETE ERROS proposto por Chico Amaral: “Talvez pudesse continuar minha história, dar um fim e começar outra.”

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Acaso e estratégiA

MARÍLIA PANITZ

Outubro de 2001. Publicado em Gentil Reversão, 2002, CCBB – Brasília.

20 de agosto: Tenho lido tanto, que o fato de ler tanto em uma língua que não domino e entender tanto do que querem dizer, me faz pensar nas palavras acessórios, as palavras adereços, as palavras balangandãs. Tenho pensado nas palavras que não servem àra nada, aão as palavras-obras-de-arte. Não existe, para elas, uma função utilitária, prática, objetiva. Elas apenas existem para fazer diferença. Existem para encher os olhos e a alma. Não precisam significar nada, precisam apenas estar ali, paradas ocupadas em ser palavras, em estar no lugar certo, na hora certa. Não deve ser fácil a vida de palavra acessório, tão necessária e por vezes, tão desapercebida. Nunca faz o papel principal. Sempre fazendo figuração, mas suporte essencial para a beleza. (Angélica Franca) 1

Retrato Falado. Versão de rua, 2002

Chico Amaral foi morar em Barcelona, contratado por uma empresa na qual ninguém o conhecia pessoalmente. O que o apresentou foi seu trabalho e a descrição que dele foi feita. Chico, o profissional, tinha seu retrato. Chico, a pessoa, era uma incógnita a ser desvendada pela empresa e pela cidade (que ele também teria que desvendar). Chico passava a ser um anônimo (um sem nome). Sua última obra produzida no Brasil chama-se Retrato Falado. Quatro enormes reproduções de retratos seus, feitos por um desenhista da polícia, a partir de depoimentos colhidos de quatro pessoas muito próximas a ele: sua mulher, um fotografo amigo, uma jornalista colega de jornal e um grande amigo também artista2. Quatro retratos absolutamente diferentes. Quatro chicos… nenhum chico… Tão estranhos, poruqe desconhecidos e ao mesmo tempo denunciadores da mais absoluta familiaridade com aquele roto-que-é-e-não-e-quatro-rostos: re(des)conhecido. Ao lado das imagens, os textos dos depoimentos delineiam um anônimo que, todavia, guarda as características de um ser nomeado (e portanto diferenciado dos outros uns) visto por diferentes olhares.

Castelo e cartas para jogar arte, 2000

Ao descrever sua nova casa na Espanha, ele fala de um hall de entrada coberto por um tapete verde feito de grama artificial. Ou seja, “entra-se para fora” em um verde que cita outros verdes presentes em sua obra. Este tapete, matéria-prima para eventuais quadras de jogos de futebol, remete ao verde das insólitas mesas de pingue-pongue que projeta, para o feltro verde das mesas de carteado.

Essas duas histórias recentes atualizam as questões que o trabalho de Chico visita recorrentemente: o autoretrato construído metaforicamente pela inserção da matéria-palavra, reguladora da imagem de si que ele oferece/compõe para um outro registrar (orientando a execução dos objetos/obras); e o binômio paradoxal Acaso/estratégia que o jogo comporta (e suporta), conduzido pelas palavras/enigmas de suas mínimas indicações. São duas questões que convivem na obra e apontam para o fato de que a construção poética é capaz de tecer tecidos impossíveis, entrelaçar a subjetividade à esfera do impessoal das regras a serem seguidas por todos, igualmente.

Alguma bolinhas de pingue-pongue estão inscritas: “minha vez de esperar sua vez”. E as raquetes podem conter o rosto de Chico – duas que viram uma, unidas por suas bases, então transformadas em compridas bandagens de borracha que se enrolam em torno do corpo do artista, construindo um (auto)retrato de uma múmia negra. A única pista de identidade são essas raquetes que pendem das extremidades das bandagens (o que não deixa de lembrar as múmias romanas portanto, no lugar dos rostos, um belo retrato do morto que não condiz com o momento de sua morte, mas com a imagem que dele se queria conservar). O retrato da raquete tem olhos e boca escondidos/reformatados pelas bolinhas de pingue-pongue. Um autorretrato que abdica de desvelar suas particularidades: UM QUE PODE SER QUALQUER OUTRO.

Jogo dos Sete Erros, manual de montagem

Tensionando a ideia da possível manutenção de uma identidade – de saída colocada no campo do imaginário – ele a situa (como um propositor de jogos) em constante parceria /contenda com a alteridade. “Umseroutroumser”, “um ou outro”, “um & outro”, “um A outro”, “eu que não sou eu que não sou só eu que não sou só eu que não sou só”3 … um que joga consigo sendo seu adversário. Um jogo que se joga por si mesmo.

Talvez todas essas sejam propostas de localização do olhar desses uns/outros: artista/artista, artista/fruidor, fruidor/artista. Estabelecimento de lugares que podem ser ocupados por um ou outro e por um & outro, simultaneamente, operados por um terceiro ­– sempre presente na relação entre dois ­– que é a linguagem. Concebidas como armadilhas para o olhar, ao requisitarem uma ação direta do fruidor, as obras se oferecem também como enigma ao próprio artista, exposto às versões produzidas pelos observadores que criam seus próprios “modos de usar” a partir das “instruções” que recebem. Não há lugar garantido: UM É OUTRO.

Objeto de asfalto e alumínio, 1996

Já no início de sua trajetória, quando explorava as possibilidades da pintura, essas mesmas questões pareciam se apresentar nas inscrições recobertas e redescobertas sobre a superfície da tela, na qual a palavra assumia o duplo papel de signo e de matéria. Era nomeação que se escondia e se esvaziava de qualquer significação, era jogo de velar/desvelar, capturando o observador no exercício de decifração. Mais que impacto retiniano, tratava-se de exigir ação compartilhada de artista e fruidor.

Questões que surgiam também nas coleções de fragmentos de asfalto (material usado também para pintar) que foram abrindo caminho para o espaço tridimensional ao se associarem ao chumbo e à borracha. Coleções impossíveis de categorizar; coleções de “issos”, expostas a partir de uma catalogação rigorosa. “Issos” com lugar e função contingente.

Óculos espelhados para dentro, 1996

Depois vieram os Equipamentos de ver, já a meio caminho do abandono da manufatura, que aconteceria nas séries seguintes. Xícaras, óculos e olhos mágicos que devolviam o olhar do olhador (uma espécie de auto-retrato de todo mundo4). Chico associa os equipamentos de ver à ideia de prestidigitação, a uma espécie de dejaprés5 contraposto ao dejà-vu: visão que, ao invés de conter o sentido de revivência como o último termo, lança o de projeção, sugestão da visão que virá. De qualquer maneira, circunscrição do olhar. Lembrete de nossas limitações. Nosso olhar submetido pelas marcas de visões anteriores, pela visão de nós mesmos: UM É E NÃO É OUTRO.

A série Jogo dos 7 Erros, incorpora plenamente a estratégia adotada pelo artista na criação de suas obras: concepção + direção + manufatura terceirizada. Aqui, surgem as inúmeras versões possíveis (e ainda mais, impossíveis) do jogo de pingue-pongue. Portadores de um rigor exigidos pelas regras do jogo, os objetos sofrem deformações que impossibilitam o ato de jogar. A ação confinada ao cérebro do fruidor. Para abordá-los, é necessário embarcar na brincadeira que eles propõem… e aí se está capturado na armadilha da qual qualquer saída terá de ser inventada. Capturado por um movimento pendular entre a requisição de uma ação física sobre a obra e o seu impedimento: jogue se puder! Embalam o percurso sons que podem ser a repetição ad infinitum do ruído da bola sobre a mesa, durante o jogo, ou a fala dos alto-falantes saídos de insólitas mesas, cuja vibração desloca as bolinhas para cima e para baixo, repetindo exaustivamente: um ser outro um ser… UM E OUTRO. O díptico sonoro – outras mesas verdes em anamorfose – portam a sua inscrição: na primeira de um, em seu par de outro. Delas saltam bolinhas impulsionadas pelo som do jogo em curso (dois que são um par, são par-ceiros e jogam sozinhos). Mas as bolinhas trazem o texto complementar/anulador das afirmações: em de um, elas afirmam de outro; em de outro, nos segredam de um: NEM UM NEM OUTRO.

Jogo dos Sete Erros, mesas caixas

Há também uma rifa O verbo de sua simpatia – Por quantas vezes eu irei… você?, cem verbos plotados a exigir adesão (entusiasmada) dos visitantes a uma-enquete-para-nada que oferece como prêmio a bolinha do jogo de pingue-pongue. Assina-se sob a ação de nossa preferência (!?): atravessar, contactar, moldar, fritar, penetrar, esculpir, olhar, matar, substituir… Verbos sem sujeito sem objeto… verbos para nada. Ou verbos a serem encaixados em algum lugar futuro, verbos dejaprés.

Cartas para jogar arte, 2001

Seu trabalho mais recente, já elaborado na condição de estrangeiro, traz um baralho de muitos Ases que não são por muito tempo o que eram: Ás que é &, Ás que é A, Ás que é OU… valete que é UM e é OUTRO. Segundo o artista, nesse jogo, “…jogar seria ordenar as cartas. Várias mãos de cartas, como sequência de pôquer. Elas formarão sequências de frases ou poemetos”6 ou… seria fazer castelos de cartas… ou associar, às palavras, o valor simbólico dos naipes: espadas = ar; paus = fogo; copas = água; ouros = terra; valete = sujeito da transição = ambivalência. Código sobre código sobre código…. A ser usado sobre o feltro verde de uma mesa de jogos, para que ninguém se esqueça do que se trata, afinal. Ao se insinuarem como possível matéria-prima para um castelo-devir para quem souber ler, esses baralhos apontam as sua ancestralidade, filhos que são de um outro, trazidos aos nosso olhos-ouvidos pela mão de Calvino7, quando ele nos relata a história de uma mapa de destinos constituído por cartas de baralho, sua poesia de destinos cruzados. Por isso, esse baralho de Chico é itinerante, desloca-se levado por quem ousar lê-lo… e fazer trilhas poética com ele.

Catavento, 2000

Para aquela entrada-jardim de seu recente hall-de-saída, Chico conta que montou um catavento-para-lugares-sem-vento, catavento de apartamento e de galeria, esperando – flor(girassol) simulada que também é – que simulemos a brisa que o fará girar as palavras que suas pétalas carregam sempre aos pares e contrapostas: eu – que – não – sou só. Espera que nós, leitores, provoquemos neles a a ilegibilidade. Seus “cata-olhos, gira-olhos, gira-textos, cata-sopros, cata-gente”8 nos falam da volatilidade das plavras… mesmo as que estão gravadas… um em outro tempo, em outro lugar, já é outro. “Eu que não sou só eu que não…”. Sem dúvida, cata-gente.

Todas essas estratégias (que são estrutura a ser preenchida pelos lances do acaso) parecem dizer de maneira ambiguamente sutil e contundente que a questão de ser “um” (que é ser outro), constituir-se como sujeito (que não se confunde com indivíduo, pois está descentrado em relação a este último), diz respeito a pequenos gestos e palavras – sobre os quais temos certo domínio – que se repetem constantemente, criando assim a pontuação à versão que constituímos sobre nós mesmos e sobre a qual nos apoiamos, quando falamos nosso próprio nome. A nossa diferença.

 

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1 Do “Diário de Maria”, de Angélica Franca, vivendo sua aventura em Barcelona.

2 São eles: Angélica Franca, Cláudio Versiani, Tina Vieira e Ralph Gehre.

3 Umser… é o nome de uma vídeo-instalação, exibida no Salão da Bahia em 2000/1; os outros “uns” são possibilidades de um jogo de cartas; “Eu que…” é o texto distribuído nas pétalas de um catavento-flor-enigma que o artista constrói no momento.

4 Como referência ao livro “Autobiografia de todo mundo” de Gertrude Stein, onde identidade e alteridade se confundem. No texto, sem utilizar uma única pontuação, ela conta a história de vários participantes da vanguarda histórica (e a dela, entre eles) vivendo na <pais do início do século XX.

5 Termo cunhado pelo artista.

6 De um e-mail enviado ao Gentil Reversão em 7/09.

7 Ítalo Calvino, “O castelo dos destinos cruzados”, Cia das Letras 1990. Do mesmo Calvino, Chioc toma a descrição do ato de botar-o-lixo-para-fora como alusão e álibi filosófico para a rotina7. O mínimo pode conter o máximo de evocação: para um viajante/estrangeiro (“me mudei – me mudo”) o ato de desfazer-se de algo (mesmo dos restos) vem carregado de desdobramentos. No texto “La poubelle agréée”. In, “O caminho de San Giovani”, Cia das Letras 2000, p. 79-101. Os e-mails que troca com Ralph Gehre, em agosto desenvolvem esta ideia.

8 Nomes possíveis para esse objeto, ainda em construção, aventados pelo artista, num e-mail de 25/10:

“Creio que serão negros. Serão postos virados para cima, como girassóis. Ah, meu jardim-deslocado de plástico. Girassóis negros que buscam olhos para que sejam lidos. Gira-olhos? Cata-olhos? Gira-textos? Para lê-los deve-se olhar para baixo. À medida que entram em movimento, o texto perde a legibilidade. Girar dá vertigem ao texto. Mudar de posição também (me mudei – me mudo). Vertigem do texto de ser. Gira-ser? Te lembro que na sala não há vento. Para que estes tais girem, precisam ser soprados. São interativos. Catam-sopros? Catam-gente? Penso que se instalam como um jardim…”.

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Portfólio

O Jogo dos Sete Erros

Jogo dos Sete Erros, Mesa Fólio, 1999
Jogo dos Sete Erros, Mesa Fólio, 1999
Jogo dos Sete Erros, mesa escada, 2000
Jogo dos Sete Erros, mesa curta, 2000
Jogo dos Sete Erros, 1999. Foto Tuca Reinés, arquivo MAM SP
Jogo dos Sete Erros, mesa redonda, 1999
Jogo dos Sete Erros, mesas caixas, 1999
Jogo dos Sete Erros, raquete, 1999
Jogo dos Sete Erros, raquetes grossas e com buraco, 1999
Jogo dos Sete Erros, raquete mole, 1999
Jogo dos Sete Erros, miniatura, 1999
Jogo dos Sete Erros, bolinhas, 1999
Jogo dos Sete Erros, manual de montagem, 1999
Jogo dos Sete Erros, cartas, 2001
Jogo dos Sete Erros, cartas
Jogo dos Sete Erros, cartas, 2001
Jogo dos Sete Erros, castelo de cartas, 2001
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Textos

A regra do jogo

GÊ ORTHOF

21 de fevereiro de 2000. Publicado em Gentil Reversão, 2002, CCBB – Brasília.

 

Chico Amaral produz obras que utilizam uma tática de intimidade pela subversão do olhar, do sentido da obra, do valor da obra de arte, da seriedade e mesmo da própria razão de ser da obra mesma. De pronto enfrentamos uma crise de escalas: macro x micro. Imensas e bizarras mesas de jogar pingue-pongue com minúsculas regras ou propostas impressas em bolinhas ou manuais de instruções. Um constante pingue-pongue entre as minúsculas ironias encontradas nas entrelinhas das regras e o gigantismo de mesas, redes e raquetes que nos intimidam a iniciar qualquer partida, ainda que mentalmente.

Qual a lógica desse mundo absurdo de um jogo que sequer pertence ao olimpo das atividades esportivas, como o distinto e próximo tênis, o sofisticado golfe, o popular futebol, ou a vigorosa natação? Quem realmente se importa com o pingue-pongue? Seria essa uma primeira pista? a ausência de valor do esporte escolhido? Sua memória atrelada a um local da infância? Quem seria o parceiro do artista nesse estranho jogo? Talvez Chico ao escolher uma estética que permeia o tempo da infância e o espaço do cotidiano, a exemplo de artistas como Tony Ousler, John Baldessari, Mel Bochner, Felix Gonzalez-Torres, Jenny Holzer, Mike Kelly, Jeff Koons, ou Roni Horn, busque uma espécie de seleção natural de seu público. Provavelmente muitos olharão com desprezo, ou sequer olharão, mas alguns irão certamente se deliciar com o jogo-dentro-da-arte-dentro-do-jogo que as instalações promovem desafiando e desafinando certas certezas que formam o que paradoxalmente se convencionou como regras do nosso contemporâneo.

Outra pista encontra-se nos intervalos (vários) que se insinuam em sua obra: a do som entre o ir de pingue e o vir de pongue, que lança luz sobre o e s(tem) p (o) a ç o entre o embate de um jogador e seu (aparente) adversário, entre a velocidade da imagem e a lentidão proposital da leitura. Chico brinca com o mestre Cage e flui em um desconexo sistema de entre-coisas que atiçam o inútil desejo, por parte do público, de reconstruir o todo. Mas aos poucos vamos percebendo que esse é um jogo que não se joga com o outro, mas com, ou contra, dependendo da expectativa, nós mesmos. O que parece estar irremediavelmente comprometido ao aceitarmos as regras do jogo são as nossas certezas. O jogo ardiloso é suficientemente hábil enquanto artesania para nos seduzir pela sua aparente inocência e logo, desarmados capitulamos hipnotizados talvez pelo deslocamento contínuo, e quase mecânico do bater e rebater da bolinha. Já não somos nem um nem outro. Apenas jogamos o jogo desejando um dia, talvez, descobrir a sua regra.