Acaso e estratégiA

MARÍLIA PANITZ

Outubro de 2001. Publicado em Gentil Reversão, 2002, CCBB – Brasília.

20 de agosto: Tenho lido tanto, que o fato de ler tanto em uma língua que não domino e entender tanto do que querem dizer, me faz pensar nas palavras acessórios, as palavras adereços, as palavras balangandãs. Tenho pensado nas palavras que não servem àra nada, aão as palavras-obras-de-arte. Não existe, para elas, uma função utilitária, prática, objetiva. Elas apenas existem para fazer diferença. Existem para encher os olhos e a alma. Não precisam significar nada, precisam apenas estar ali, paradas ocupadas em ser palavras, em estar no lugar certo, na hora certa. Não deve ser fácil a vida de palavra acessório, tão necessária e por vezes, tão desapercebida. Nunca faz o papel principal. Sempre fazendo figuração, mas suporte essencial para a beleza. (Angélica Franca) 1

Retrato Falado. Versão de rua, 2002

Chico Amaral foi morar em Barcelona, contratado por uma empresa na qual ninguém o conhecia pessoalmente. O que o apresentou foi seu trabalho e a descrição que dele foi feita. Chico, o profissional, tinha seu retrato. Chico, a pessoa, era uma incógnita a ser desvendada pela empresa e pela cidade (que ele também teria que desvendar). Chico passava a ser um anônimo (um sem nome). Sua última obra produzida no Brasil chama-se Retrato Falado. Quatro enormes reproduções de retratos seus, feitos por um desenhista da polícia, a partir de depoimentos colhidos de quatro pessoas muito próximas a ele: sua mulher, um fotografo amigo, uma jornalista colega de jornal e um grande amigo também artista2. Quatro retratos absolutamente diferentes. Quatro chicos… nenhum chico… Tão estranhos, poruqe desconhecidos e ao mesmo tempo denunciadores da mais absoluta familiaridade com aquele roto-que-é-e-não-e-quatro-rostos: re(des)conhecido. Ao lado das imagens, os textos dos depoimentos delineiam um anônimo que, todavia, guarda as características de um ser nomeado (e portanto diferenciado dos outros uns) visto por diferentes olhares.

Castelo e cartas para jogar arte, 2000

Ao descrever sua nova casa na Espanha, ele fala de um hall de entrada coberto por um tapete verde feito de grama artificial. Ou seja, “entra-se para fora” em um verde que cita outros verdes presentes em sua obra. Este tapete, matéria-prima para eventuais quadras de jogos de futebol, remete ao verde das insólitas mesas de pingue-pongue que projeta, para o feltro verde das mesas de carteado.

Essas duas histórias recentes atualizam as questões que o trabalho de Chico visita recorrentemente: o autoretrato construído metaforicamente pela inserção da matéria-palavra, reguladora da imagem de si que ele oferece/compõe para um outro registrar (orientando a execução dos objetos/obras); e o binômio paradoxal Acaso/estratégia que o jogo comporta (e suporta), conduzido pelas palavras/enigmas de suas mínimas indicações. São duas questões que convivem na obra e apontam para o fato de que a construção poética é capaz de tecer tecidos impossíveis, entrelaçar a subjetividade à esfera do impessoal das regras a serem seguidas por todos, igualmente.

Alguma bolinhas de pingue-pongue estão inscritas: “minha vez de esperar sua vez”. E as raquetes podem conter o rosto de Chico – duas que viram uma, unidas por suas bases, então transformadas em compridas bandagens de borracha que se enrolam em torno do corpo do artista, construindo um (auto)retrato de uma múmia negra. A única pista de identidade são essas raquetes que pendem das extremidades das bandagens (o que não deixa de lembrar as múmias romanas portanto, no lugar dos rostos, um belo retrato do morto que não condiz com o momento de sua morte, mas com a imagem que dele se queria conservar). O retrato da raquete tem olhos e boca escondidos/reformatados pelas bolinhas de pingue-pongue. Um autorretrato que abdica de desvelar suas particularidades: UM QUE PODE SER QUALQUER OUTRO.

Jogo dos Sete Erros, manual de montagem

Tensionando a ideia da possível manutenção de uma identidade – de saída colocada no campo do imaginário – ele a situa (como um propositor de jogos) em constante parceria /contenda com a alteridade. “Umseroutroumser”, “um ou outro”, “um & outro”, “um A outro”, “eu que não sou eu que não sou só eu que não sou só eu que não sou só”3 … um que joga consigo sendo seu adversário. Um jogo que se joga por si mesmo.

Talvez todas essas sejam propostas de localização do olhar desses uns/outros: artista/artista, artista/fruidor, fruidor/artista. Estabelecimento de lugares que podem ser ocupados por um ou outro e por um & outro, simultaneamente, operados por um terceiro ­– sempre presente na relação entre dois ­– que é a linguagem. Concebidas como armadilhas para o olhar, ao requisitarem uma ação direta do fruidor, as obras se oferecem também como enigma ao próprio artista, exposto às versões produzidas pelos observadores que criam seus próprios “modos de usar” a partir das “instruções” que recebem. Não há lugar garantido: UM É OUTRO.

Objeto de asfalto e alumínio, 1996

Já no início de sua trajetória, quando explorava as possibilidades da pintura, essas mesmas questões pareciam se apresentar nas inscrições recobertas e redescobertas sobre a superfície da tela, na qual a palavra assumia o duplo papel de signo e de matéria. Era nomeação que se escondia e se esvaziava de qualquer significação, era jogo de velar/desvelar, capturando o observador no exercício de decifração. Mais que impacto retiniano, tratava-se de exigir ação compartilhada de artista e fruidor.

Questões que surgiam também nas coleções de fragmentos de asfalto (material usado também para pintar) que foram abrindo caminho para o espaço tridimensional ao se associarem ao chumbo e à borracha. Coleções impossíveis de categorizar; coleções de “issos”, expostas a partir de uma catalogação rigorosa. “Issos” com lugar e função contingente.

Óculos espelhados para dentro, 1996

Depois vieram os Equipamentos de ver, já a meio caminho do abandono da manufatura, que aconteceria nas séries seguintes. Xícaras, óculos e olhos mágicos que devolviam o olhar do olhador (uma espécie de auto-retrato de todo mundo4). Chico associa os equipamentos de ver à ideia de prestidigitação, a uma espécie de dejaprés5 contraposto ao dejà-vu: visão que, ao invés de conter o sentido de revivência como o último termo, lança o de projeção, sugestão da visão que virá. De qualquer maneira, circunscrição do olhar. Lembrete de nossas limitações. Nosso olhar submetido pelas marcas de visões anteriores, pela visão de nós mesmos: UM É E NÃO É OUTRO.

A série Jogo dos 7 Erros, incorpora plenamente a estratégia adotada pelo artista na criação de suas obras: concepção + direção + manufatura terceirizada. Aqui, surgem as inúmeras versões possíveis (e ainda mais, impossíveis) do jogo de pingue-pongue. Portadores de um rigor exigidos pelas regras do jogo, os objetos sofrem deformações que impossibilitam o ato de jogar. A ação confinada ao cérebro do fruidor. Para abordá-los, é necessário embarcar na brincadeira que eles propõem… e aí se está capturado na armadilha da qual qualquer saída terá de ser inventada. Capturado por um movimento pendular entre a requisição de uma ação física sobre a obra e o seu impedimento: jogue se puder! Embalam o percurso sons que podem ser a repetição ad infinitum do ruído da bola sobre a mesa, durante o jogo, ou a fala dos alto-falantes saídos de insólitas mesas, cuja vibração desloca as bolinhas para cima e para baixo, repetindo exaustivamente: um ser outro um ser… UM E OUTRO. O díptico sonoro – outras mesas verdes em anamorfose – portam a sua inscrição: na primeira de um, em seu par de outro. Delas saltam bolinhas impulsionadas pelo som do jogo em curso (dois que são um par, são par-ceiros e jogam sozinhos). Mas as bolinhas trazem o texto complementar/anulador das afirmações: em de um, elas afirmam de outro; em de outro, nos segredam de um: NEM UM NEM OUTRO.

Jogo dos Sete Erros, mesas caixas

Há também uma rifa O verbo de sua simpatia – Por quantas vezes eu irei… você?, cem verbos plotados a exigir adesão (entusiasmada) dos visitantes a uma-enquete-para-nada que oferece como prêmio a bolinha do jogo de pingue-pongue. Assina-se sob a ação de nossa preferência (!?): atravessar, contactar, moldar, fritar, penetrar, esculpir, olhar, matar, substituir… Verbos sem sujeito sem objeto… verbos para nada. Ou verbos a serem encaixados em algum lugar futuro, verbos dejaprés.

Cartas para jogar arte, 2001

Seu trabalho mais recente, já elaborado na condição de estrangeiro, traz um baralho de muitos Ases que não são por muito tempo o que eram: Ás que é &, Ás que é A, Ás que é OU… valete que é UM e é OUTRO. Segundo o artista, nesse jogo, “…jogar seria ordenar as cartas. Várias mãos de cartas, como sequência de pôquer. Elas formarão sequências de frases ou poemetos”6 ou… seria fazer castelos de cartas… ou associar, às palavras, o valor simbólico dos naipes: espadas = ar; paus = fogo; copas = água; ouros = terra; valete = sujeito da transição = ambivalência. Código sobre código sobre código…. A ser usado sobre o feltro verde de uma mesa de jogos, para que ninguém se esqueça do que se trata, afinal. Ao se insinuarem como possível matéria-prima para um castelo-devir para quem souber ler, esses baralhos apontam as sua ancestralidade, filhos que são de um outro, trazidos aos nosso olhos-ouvidos pela mão de Calvino7, quando ele nos relata a história de uma mapa de destinos constituído por cartas de baralho, sua poesia de destinos cruzados. Por isso, esse baralho de Chico é itinerante, desloca-se levado por quem ousar lê-lo… e fazer trilhas poética com ele.

Catavento, 2000

Para aquela entrada-jardim de seu recente hall-de-saída, Chico conta que montou um catavento-para-lugares-sem-vento, catavento de apartamento e de galeria, esperando – flor(girassol) simulada que também é – que simulemos a brisa que o fará girar as palavras que suas pétalas carregam sempre aos pares e contrapostas: eu – que – não – sou só. Espera que nós, leitores, provoquemos neles a a ilegibilidade. Seus “cata-olhos, gira-olhos, gira-textos, cata-sopros, cata-gente”8 nos falam da volatilidade das plavras… mesmo as que estão gravadas… um em outro tempo, em outro lugar, já é outro. “Eu que não sou só eu que não…”. Sem dúvida, cata-gente.

Todas essas estratégias (que são estrutura a ser preenchida pelos lances do acaso) parecem dizer de maneira ambiguamente sutil e contundente que a questão de ser “um” (que é ser outro), constituir-se como sujeito (que não se confunde com indivíduo, pois está descentrado em relação a este último), diz respeito a pequenos gestos e palavras – sobre os quais temos certo domínio – que se repetem constantemente, criando assim a pontuação à versão que constituímos sobre nós mesmos e sobre a qual nos apoiamos, quando falamos nosso próprio nome. A nossa diferença.

 

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1 Do “Diário de Maria”, de Angélica Franca, vivendo sua aventura em Barcelona.

2 São eles: Angélica Franca, Cláudio Versiani, Tina Vieira e Ralph Gehre.

3 Umser… é o nome de uma vídeo-instalação, exibida no Salão da Bahia em 2000/1; os outros “uns” são possibilidades de um jogo de cartas; “Eu que…” é o texto distribuído nas pétalas de um catavento-flor-enigma que o artista constrói no momento.

4 Como referência ao livro “Autobiografia de todo mundo” de Gertrude Stein, onde identidade e alteridade se confundem. No texto, sem utilizar uma única pontuação, ela conta a história de vários participantes da vanguarda histórica (e a dela, entre eles) vivendo na <pais do início do século XX.

5 Termo cunhado pelo artista.

6 De um e-mail enviado ao Gentil Reversão em 7/09.

7 Ítalo Calvino, “O castelo dos destinos cruzados”, Cia das Letras 1990. Do mesmo Calvino, Chioc toma a descrição do ato de botar-o-lixo-para-fora como alusão e álibi filosófico para a rotina7. O mínimo pode conter o máximo de evocação: para um viajante/estrangeiro (“me mudei – me mudo”) o ato de desfazer-se de algo (mesmo dos restos) vem carregado de desdobramentos. No texto “La poubelle agréée”. In, “O caminho de San Giovani”, Cia das Letras 2000, p. 79-101. Os e-mails que troca com Ralph Gehre, em agosto desenvolvem esta ideia.

8 Nomes possíveis para esse objeto, ainda em construção, aventados pelo artista, num e-mail de 25/10:

“Creio que serão negros. Serão postos virados para cima, como girassóis. Ah, meu jardim-deslocado de plástico. Girassóis negros que buscam olhos para que sejam lidos. Gira-olhos? Cata-olhos? Gira-textos? Para lê-los deve-se olhar para baixo. À medida que entram em movimento, o texto perde a legibilidade. Girar dá vertigem ao texto. Mudar de posição também (me mudei – me mudo). Vertigem do texto de ser. Gira-ser? Te lembro que na sala não há vento. Para que estes tais girem, precisam ser soprados. São interativos. Catam-sopros? Catam-gente? Penso que se instalam como um jardim…”.

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