Retrato falado são quatro reproduções em grande formato de retratos do artista feitos por um técnico da Polícia Civil de Brasília a partir do depoimento de quatro pessoas muito próximas a mim: minha mulher, um fotógrafo, uma jornalista e um amigo também artista. Ao lado das imagens, são expostas as transcrições dos depoimentos e os áudios dos depoimentos feitos ao policial. São quatro retratos absolutamente diferentes, quatro tentativas de reconstituição de meu rosto que expõem a familiaridade das testemunhas comigo, em uma reflexão sobre alteridade e processo de construção de identidade. Ao tomar os depoimentos, o policial percorre à sua maneira questões que pertencem ao assunto da obra: gênero, origem étnica, aspectos sociais, culturais e comportamentais. O trabalho foi produzido em 2001 e formalmente se constitui de 9 lâminas medindo 100 x 150 cm com 4 retratos e 5 textos intercalados por 4 reprodutores de áudio.
Em Retrato falado, produzido em seguida à série Jogo dos sete erros, que lidava com a alteridade através de jogos, me coloco como o objeto do jogo. Através de um intermediário, o retratista policial – sem o qual a obra não existiria –, tento investigar quanto de mim há nos que se relacionam comigo. E ocorreram surpresas no processo: sem que eu soubesse, a montagem de um retrato falado pela polícia do Distrito Federal, naquele momento, era feita a partir de um banco de imagens com pedaços de rostos de prisioneiros do Carandiru. As reproduções de meu rosto são, portanto, colagens de pessoas acuadas, assustadas e estranhas a mim. São outros que se somaram aos meus conhecidos para reconstruir minha identidade. O próprio método de trabalho do retratista também veio enriquecer o projeto: a entrevista que ele conduz para tomar o depoimento é uma abordagem simples e sucinta sobre constituição de identidade e daí minha decisão de incorporá-lo à obra. Para conseguir as informações que necessita, o técnico tem que explicar ao depoente, por exemplo, os tipos raciais.
As imagens são produzidas originalmente em formato A4 com resolução de 72 dpis, resolução e formato suficientes para o trabalho de identificação policial, mas inadequado para ampliações. Ao imprimi-las em tamanho grande, incorporo esta precariedade, e exponho o processo de produção, deixando claro o deslocamento do objeto de seu contexto original para um outro circuito. Fica evidente que a junção de partes do rosto é feita à base de retoques de Photoshop. Os sinais como rugas, marcas e o brinco variam de posição, quantidade e forma tanto quanto o desenho do queixo, das sobrancelhas e do perímetro do rosto. A pele varia de uma área a outra. Tudo é forçadamente reunido a partir da eleição de pedaços de fotos feita pelo depoente, sob a orientação do retratista que finaliza a montagem com a ferramenta de retoque.
Os textos dos depoimentos são o testemunho do momento de construção da imagem. Identificam retratista e testemunha, revelam o processo e introduzem ao observador, por via de terceiros, as questões que me interessam. São impressos no mesmo formato e no mesmo tipo de papel das imagens.
Juntamente com os textos, os áudio das entrevistas ajudam a reconstruir o momento de produção. Através deles pode-se explorar a experiência da entrevista: a tensão inicial e a forma como o retratista consegue com que o depoimento flua, as enormes pausas no momento em que ele trabalha sobre o desenho ou em que a testemunha duvida de suas escolhas, as diferenças de caráter presentes na voz de cada testemunha e até a exaustão que provoca o processo.
Dentro da arte brasileira, Retrato falado, estabelece pontos de contato com obras como Inserções em circuitos ideológicos e Inserções em circuitos antropológicos de Cildo Meireles, e Seja marginal, seja heróis de Hélio Oiticica.
Setembro de 2006. Publicado em Obras Comentadas da Coleção do Museu de Arte Moderna de São Paulo. MAM – São Paulo.
Pingue – Eu sou o homem que não sabia jogar. Li Heráclito e já morri. O mesmo Heráclito que anuncia: “A vida é um jovem que joga, jogo de dados: do jovem é o reino”1 Quer jogar uma partida comigo?
Pongue – Eu não morro. Eu erro. A errância entre a arte e a vida me joga sempre para o outro lado da rede. Como posso ser seu adversário quando já sou o meu?
Pingue – Primeiro erro: neste ou em qualquer outro jogo, somos sempre o nosso primeiro adversário, o que não exclui um segundo, um terceiro, ou todo o público que estiver nos assistindo. Podemos circular em volta da mesa sincronicamente jogue na vez do outro… seja o outro na sua vez. Assim, já não nos banharemos nas mesmas águas de um mesmo rio. Serás o vencedor enquanto estiveres jogando e criando as possibilidades do erro. Regra não há. Fluxos sim, ou Fluxus.2
Jogo dos Sete Erros
Pongue – Chico Amaral tem uma série de trabalhos com a proposta Jogo dos 7 erros. Ele já concebeu, por exemplo, várias mesas de pingue-pongue circulares, com 180 cm de diâmetro. Nesta passagem de um campo a outro, realizamos a volta de 360 graus, para retornarmos diferentes ao nosso ponto de partida. Chico Amaral me perturba. Com as bolas de pingue-pongue recheadas com areia ou água, eu me frustro. Elas não prolongam a trajetória de meu gesto, perco o passo, desacerto o espaço.
Pingue – Segundo erro: Ponto perdido é ponto ganho! Questões de posicionamento e ação, meu caro. Atenção: Percepção requer envolvimento. 3 O espaço e o tempo estão no som da bola branca que bate e rebate, pica e repica, ou ainda desaparece. Quando a bolinha cai no vazio, o silêncio anuncia o fracasso. Ponto final. Não há mais campo, não há mais mesa, rompe-se o eixo de alternância. Se seguirmos alguns lances de Samuel Beckett, saberemos que ri melhor quem falha por último. Tente de novo.
Pongue – Estou me sentido como Hamm, personagem de seu amigo Beckett em Fim de partida: “Me sinto um pouco à esquerda demais (…) Agora me sinto um pouco à direita demais (…) Me sinto um pouco pra frente demais. Agora me sinto um pouco pra trás demais (…) Não fique aí parado (…) você me dá arrepios.”4
Pingue – O Jogo dos 7 erros – proposta 1 não quer saber de ninguém parado. É o movimento que promove o jogo. O homem que não sabia jogar imobilizou-se no seu desespero, não soube esperar, perdeu as esperanças. Suicidou-se. Este sou eu. Mas como eu, neste caso, posso ser o outro (seja o outro na sua vez), vivo agora esperando adversários. Toda espera é um ato de afeto. Agora eu já sei: Importa saber viver. Importa saber jogar. Viver e jogar é o mesmo5 . Em algumas bolinhas de pingue-pongue, posso ler: minha vez de esperar sua vez.6 Quer jogar uma partida comigo?
Jogo dos Sete Erros. Foto Tuca Reinés, arquivo MAM SP
Pongue – Fluxus, enquanto movimento da história da arte recente e associado ao Dada é uma das bolinhas de pingue-pongue de Chico Amaral. O artista joga com a história da arte fatiando-a e apresentando-a em múltiplas camadas. Esticaa da mesma forma como estende uma mesa-campo a 6,8 m. Neste caso, o território do jogo pode vir a ser uma linha de horizonte. Você, como o homem que não sabia jogar, já vivenciou a situação radical de uma linha de horizonte que se modifica ao compasso de nossos pés, não é mesmo? O chão cede quando nos colocamos em movimento.
Pingue – Você não me respondeu, e este é seu terceiro erro. Você está abandonando a errância para entrar no campo das divagações. E isto é muito diferente.
Pongue – Você é que não está percebendo. Erro com o cuidado persistente de acertar, lição de Platão reativada por Donaldo Schuler. Tentamos falhar melhor do que Beckett ou procuramos os impossíveis de uma utopia?7
Pingue – O que procuramos é ocupar os lugares, e para mim, isto é sempre possível. Porém, antes de ocupar propriamente falando, é preciso inventar. Esta é a linguagem da arte: criar lugares de jogo entre as visibilidades e as invisibilidades. O que me conduz ao desejo de estar junto à James Joyce, quando ele cria sua palavra-valise visuabilidades.Um autêntico pingue-pongue entre a visualidade e a habilidade. Nestas estratégias de jogo, é necessário ser muito hábil.
Pongue – Sou inábil. Sou ingênuo. Sou quase cego. Eu erro. Preciso de equipamentos para ver, óculos espelhados e olhos mágicos…
Pingue – Quarto erro: você não vê pouco, você olha o duplo! O um e o outro, o dentro e o fora, o eu que não sou eu, tudo isso! Uma coleção de issos! A sua miopia é a minha utopia!
Pongue – Fico vaidoso. Agora sou tal qual Hamm, o cego de Beckett, ou Hamlett, de Sheakspeare. Ser ou não ser, eis a questão.
Pingue – Quinto erro, e agora as coisas estão indo longe demais. Ser um e ser outro eis a questão do jogo.
Jogo dos Sete Erros, miniatura
Pongue – Não frequento o Olimpo dos esportes mas conheço o OULIPO literário: fabricante de regras, criam subvertendo-as ou dependendo delas. Há regras para escrever. Há regras para entrever. Marcel Duchamp também fazia parte deste grupo fundado pelo poeta Raymond Queneau, autor de Exercícios de estilo. Não vamos esquecer do que Duchamp propôs: São os olhadores que fazem o quadro.
Pingue – Estou cansando de tantos exercícios. Sexto erro: são os jogadores que fazem o jogo!
– Pingue – “O fim está no começo, e no entanto, continua-se”8. Este é um outro aprendizado a partir de Beckett. Mas a partida é nossa, e também o resultado, e ainda o prêmio. Não podemos descolar a proposição 1 de todas as outras de Chico Amaral: há a mesa que se estende como um horizonte, há aquelas que se tornaram circunferências, as que se dobram como quem derrapa e trava, em movimentos angulosos e quebradiços. Repare na mesa-escada e na mesa estreita, nas raquetes superdimensionadas ou as arqueológicas, apresentando os rebatimentos como camadas de história. Alterações dos equipamentos proporcionando o alargamento da percepção. Ponto para Antoni Muntadas! E…
– Pongue – Agora sou eu quem diz: Sétimo erro!!! É preciso terminar o jogo, concentrando-se apenas na proposição 1, de 1999, que agora faz parte da Coleção do MAM-SP. Sim, aceito jogar uma partida com você.
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1 Devo a estrutura deste texto ao fantástico ensaio de Donaldo Schuler O homem que não sabia jogar (Porto Alegre, Movimento,1998) a quem agradeço por ter me ensinado a jogar de forma diferente com as palavras. Este ensaio trás importantes noções filosóficas e literárias ao universo da criação artística. A citação de Heráclito abre o ensaio de Donaldo Schuler, como uma epígrafe.
2 Como define Jon Hendricks, Fluxus, enquanto um movimento artístico, nasceu de uma necessidade em 1961, tendo George Maciunas como mentor. As noções de mudança que as definições do dicionário forneciam para a palavra fluxo foram adotadas para a redação do primeiro manifesto, tais como mudança, endurecimento, purificação, fluidez e fusão. In: catálogo da exposição O que é fluxus? O que não é? O porquê. Curadoria de Jon Heidricks. CCBB-Brasília, 2002.
3 Esta proposição é do artista catalão Antoni Muntadas, apresentada em diferentes suportes e situações, em diversos idiomas. Faço aqui referência ao backlight instalado na Galeria Chaves (Porto Alegre), obra pertencente ao acervo da Fundação Vera Chaves Barcellos, Porto Alegre.
4 BECKETT, Samuel. Fim de partida. SP, Cosac & Naify, 2002.
5 SCHULER, Donaldo. O homem que não sabia jogar. Porto Alegre, Movimento, 1998. p.79
6 Remeto o leitor ao texto de Marilia Panitz Acaso e estratégia publicado no catálogo Gentil Reversão, CCBB-Brasília – 7/12/2001-8/2/2002, p.94, onde ela aborda a produção de Chico Amaral, relacionada aos outros artistas da exposição, quais sejam, Ana Miguel, Elder Rocha Ge Orthof e Ralph Gehre. Neste mesmo catálogo, encontramos o texto As regras do jogo, onde Ge Orthof percorre os elementos que compõem o jogo de Chico Amaral, ao mesmo tempo que decompõem algumas regras da arte.
7 Sabe-se que o assunto preferido de Samuel Beckett é o fracasso, e este tema está brilhantemente exposto por Fabio de Souza Andrade, no texto de apresentação da peça Fim de partida, bem como a proposição beckettiana: tentar de novo, falhar melhor.
8 Esta é uma das falas de Hamm, personagem da peça O fim da partida de Samuel Beckett (SP, Cosac & Naify, 2002), p.128. Desta afirmação, segue-se outra, que faz jus ao JOGO DOS SETE ERROS proposto por Chico Amaral: “Talvez pudesse continuar minha história, dar um fim e começar outra.”
Jogo dos Sete Erros, Mesa Fólio, 1999Jogo dos Sete Erros, Mesa Fólio, 1999Jogo dos Sete Erros, mesa escada, 2000Jogo dos Sete Erros, mesa curta, 2000Jogo dos Sete Erros, 1999. Foto Tuca Reinés, arquivo MAM SPJogo dos Sete Erros, mesa redonda, 1999Jogo dos Sete Erros, mesas caixas, 1999Jogo dos Sete Erros, raquete, 1999Jogo dos Sete Erros, raquetes grossas e com buraco, 1999Jogo dos Sete Erros, raquete mole, 1999Jogo dos Sete Erros, miniatura, 1999Jogo dos Sete Erros, bolinhas, 1999Jogo dos Sete Erros, manual de montagem, 1999Jogo dos Sete Erros, cartas, 2001Jogo dos Sete Erros, cartas, 2001Jogo dos Sete Erros, castelo de cartas, 2001
21 de fevereiro de 2000. Publicado em Gentil Reversão, 2002, CCBB – Brasília.
Chico Amaral produz obras que utilizam uma tática de intimidade pela subversão do olhar, do sentido da obra, do valor da obra de arte, da seriedade e mesmo da própria razão de ser da obra mesma. De pronto enfrentamos uma crise de escalas: macro x micro. Imensas e bizarras mesas de jogar pingue-pongue com minúsculas regras ou propostas impressas em bolinhas ou manuais de instruções. Um constante pingue-pongue entre as minúsculas ironias encontradas nas entrelinhas das regras e o gigantismo de mesas, redes e raquetes que nos intimidam a iniciar qualquer partida, ainda que mentalmente.
Qual a lógica desse mundo absurdo de um jogo que sequer pertence ao olimpo das atividades esportivas, como o distinto e próximo tênis, o sofisticado golfe, o popular futebol, ou a vigorosa natação? Quem realmente se importa com o pingue-pongue? Seria essa uma primeira pista? a ausência de valor do esporte escolhido? Sua memória atrelada a um local da infância? Quem seria o parceiro do artista nesse estranho jogo? Talvez Chico ao escolher uma estética que permeia o tempo da infância e o espaço do cotidiano, a exemplo de artistas como Tony Ousler, John Baldessari, Mel Bochner, Felix Gonzalez-Torres, Jenny Holzer, Mike Kelly, Jeff Koons, ou Roni Horn, busque uma espécie de seleção natural de seu público. Provavelmente muitos olharão com desprezo, ou sequer olharão, mas alguns irão certamente se deliciar com o jogo-dentro-da-arte-dentro-do-jogo que as instalações promovem desafiando e desafinando certas certezas que formam o que paradoxalmente se convencionou como regras do nosso contemporâneo.
Outra pista encontra-se nos intervalos (vários) que se insinuam em sua obra: a do som entre o ir de pingue e o vir de pongue, que lança luz sobre o e s(tem) p (o) a ç o entre o embate de um jogador e seu (aparente) adversário, entre a velocidade da imagem e a lentidão proposital da leitura. Chico brinca com o mestre Cage e flui em um desconexo sistema de entre-coisas que atiçam o inútil desejo, por parte do público, de reconstruir o todo. Mas aos poucos vamos percebendo que esse é um jogo que não se joga com o outro, mas com, ou contra, dependendo da expectativa, nós mesmos. O que parece estar irremediavelmente comprometido ao aceitarmos as regras do jogo são as nossas certezas. O jogo ardiloso é suficientemente hábil enquanto artesania para nos seduzir pela sua aparente inocência e logo, desarmados capitulamos hipnotizados talvez pelo deslocamento contínuo, e quase mecânico do bater e rebater da bolinha. Já não somos nem um nem outro. Apenas jogamos o jogo desejando um dia, talvez, descobrir a sua regra.